Indicação de leitura: Constituição transitória do Espiritismo (IV – O chefe do Espiritismo)

(Revista Espírita, dezembro de 1868)

IV – O chefe do Espiritismo

Mas quem será encarregado de manter o Espiritismo nesta via? Quem terá mesmo a força? Quem terá o tempo disponível e a perseverança para dedicar-se ao trabalho incessante que exige semelhante tarefa? Se o Espiritismo for entregue a si mesmo, sem guia, não é de temer que ele se desvie de sua rota? Que a malevolência, a que por muito tempo ainda estará exposto, não se esforce por lhe desnaturar o espírito? Com efeito, aqui está uma questão vital cuja solução é do maior interesse para o futuro da Doutrina.

A necessidade de uma direção central superior, guardiã vigilante da unidade progressiva e dos interesses gerais da Doutrina, é de tal modo evidente que já se inquietam por não ver ainda um condutor surgir no horizonte. Compreende-se que, sem uma autoridade moral capaz de centralizar os trabalhos, os estudos e as observações, de dar o impulso, de estimular o zelo, de defender o fraco, de amparar as coragens vacilantes, de ajudar com os conselhos da experiência, de fixar a opinião sobre os pontos incertos, o Espiritismo correria o risco de navegar à deriva. Não só essa direção é necessária, mas é preciso que ela tenha força e estabilidade suficientes para enfrentar as tempestades.

Aqueles que não querem qualquer autoridade não compreendem os verdadeiros interesses da Doutrina. Se alguns pensam poder dispensar qualquer direção, a maioria, aqueles que não creem em sua infalibilidade e não têm uma confiança absoluta em suas próprias luzes, sentem necessidade de um apoio, de um guia, mesmo que fosse apenas para ajudá-los a avançar com mais firmeza e segurança (Vide Revista de abril de 1866: O Espiritismo independente).

Estabelecida a necessidade de uma direção, de quem o chefe receberia os poderes? Será ele aclamado pela universalidade dos adeptos disseminados pelo mundo inteiro? É uma coisa impraticável. Se ele se impuser por sua autoridade privada, será aceito por uns, rejeitado por outros e vinte pretendentes podem surgir erguendo bandeira contra bandeira; seria ao mesmo tempo o despotismo e a anarquia. Semelhante ato seria próprio de um ambicioso, e ninguém seria menos adequado que um ambicioso, e por isto mesmo orgulhoso, para dirigir uma doutrina baseada na abnegação, no devotamento, no desinteresse e na humildade; colocado fora do princípio fundamental da Doutrina, ele não poderia senão falsear-lhe o espírito. É o que inevitavelmente aconteceria se ele não tivesse previamente tomado medidas eficazes para evitar esse inconveniente.

Admitamos, entretanto, que um homem reúna todas as qualidades requeridas para o desempenho de seu mandado, e que chegue à direção superior por uma via qualquer: os homens se sucedem, mas não se assemelham; depois de um homem bom pode vir um mau; com o indivíduo pode mudar o espírito da direção; sem maus propósitos, ele pode ter pontos de vista mais ou menos justos; se quiser fazer prevalecer suas ideias pessoais, ele pode deturpar a Doutrina, suscitar divisões, e as mesmas dificuldades renovar-se-ão a cada mudança. É preciso não perder de vista que o Espiritismo ainda não está na plenitude de sua força do ponto de vista da organização. Ele é uma criança que apenas começa a andar. Importa, pois, sobretudo no começo, premuni-lo contra as dificuldades do caminho.

Mas, perguntarão, um dos messias anunciados que devem tomar parte na regeneração, não estará à testa do Espiritismo? É provável, mas como eles não trarão na testa uma marca para se fazerem reconhecer, e como só se afirmarão por seus atos, e não serão reconhecidos como tais pela maioria senão depois de sua morte, conforme o que tiverem feito durante a vida; como, além disto, não haverá messias perpétuos, é preciso prever todas as eventualidades. Sabemos que sua missão será múltipla; que haverá messias em todos os degraus da escada e nos diversos ramos da economia social, onde cada um exercerá sua influência em proveito das ideias novas, conforme a especialidade de sua posição; todos trabalharão, pois, para o estabelecimento da Doutrina, seja numa parte, seja noutra, uns como chefes de Estado, outros como legisladores, como magistrados, cientistas, literatos, oradores, industriais etc.; cada um dará provas de si mesmo no seu ramo, desde o proletário até o soberano, sem que nada além das suas obras o distingam do comum dos homens. Se um deles deve tomar parte na direção administrativa do Espiritismo, é provável que providencialmente seja colocado em condições de aí chegar pelos meios legais que forem adotados. Circunstâncias aparentemente fortuitas para lá o conduzirão, sem desígnio premeditado de sua parte, sem que ele tenha consciência da missão (Revista Espírita: “Os messias do Espiritismo”, fevereiro e março de 1868).

Em semelhante caso, o pior de todos os chefes seria aquele que se desse por eleito de Deus. Como não é racional admitir que Deus confie tais missões a ambiciosos ou orgulhosos, as virtudes características de um verdadeiro messias devem ser, antes de tudo, a simplicidade, a humildade, a modéstia, numa palavra, o mais completo desinteresse material e moral. Ora, apenas pretensão de ser messias já seria a negação dessas qualidades essenciais, pois ela provaria, naquele que se prevalecesse de semelhante título, ou uma tola presunção, se fosse de boa-fé, ou uma notável impostura. Não faltarão intrigantes, pseudoespíritas que se queiram elevar pelo orgulho, pela ambição ou pela cupidez; outros que alardearão pretensas revelações, com a ajuda das quais procurarão pôr-se em relevo e fascinar as imaginações muito crédulas. É preciso prever, também, que sob falsas aparências, indivíduos poderiam tentar apoderar-se do leme com a segunda intenção de afundar o barco, desviando-o de sua rota. Ele não naufragará, mas poderia experimentar desagradáveis atrasos que é preciso evitar. Eis aí, sem contestação, os maiores escolhos de que o Espiritismo se deve guardar; quanto mais consistência ele toma, mais embustes lhe criarão os seus adversários.

Portanto, é dever de todos os espíritas sinceros desviar as manobras da intriga que podem ser urdidas tanto nos menores quanto nos maiores centros. Eles deverão logo de saída repudiar do modo mais absoluto quem quer que pessoalmente se apresentasse como um messias, quer como chefe do Espiritismo, quer como simples apóstolo da Doutrina. Conhece-se a árvore pelo seu fruto. Esperai, pois, que ela tenha dado frutos antes de julgar se é boa, e olhai ainda se os frutos não estão bichados. (O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XXI, nº 9: “Caracteres do verdadeiro profeta”).

Alguém com quem conversávamos a esse respeito, propunha o seguinte expediente: fazer designar os candidatos pelos próprios Espíritos em cada grupo ou sociedade espírita. Além deste meio não evitar todos os inconvenientes, haveria outros especiais nesse modo de proceder, que a experiência já demonstrou e que seria supérfluo aqui relembrar. Não se deve perder de vista que a missão dos Espíritos é de instruir-nos, de melhorar-nos, mas não de tirar a iniciativa do nosso livre-arbítrio. Eles nos sugerem pensamentos, ajudam-nos com seus conselhos, sobretudo no que concerne às questões morais, mas deixam ao nosso arbítrio o cuidado da execução das coisas materiais que eles não têm a missão de nos poupar. Em seu mundo, eles têm atribuições que não são as daqui debaixo; pedir-lhes o que está fora de suas atribuições, é expor-se às trapaças dos Espíritos levianos. Que os homens se contentem em serem assistidos e protegidos por bons Espíritos, mas que não descarreguem sobre eles a responsabilidade que incumbe aos encarnados.

Ademais, esse meio suscitaria mais embaraços do que se pensa, pela dificuldade de fazer todos os grupos participarem dessa eleição; seria uma complicação nas engrenagens, e quanto mais simplificadas forem as engrenagens, tanto menos susceptíveis elas serão de desorganizar-se.

O problema é, pois, constituir uma direção central, em condições de força e de estabilidade que a ponham ao abrigo das flutuações; que respondam a todas as necessidades da causa e que oponham uma barreira absoluta às manobras da intriga e da ambição. Tal é o objetivo do plano, do qual vamos dar um rápido esboço.

– Allan Kardec

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