Indicação de leitura: Constituição transitória do Espiritismo (VIII – Vias e meios)

(Revista Espírita, dezembro de 1868)

VIII – Vias e meios

É sem dúvida desagradável ser obrigado a entrar em considerações materiais para atingir um objetivo todo espiritual, mas é preciso observar que a própria espiritualidade da obra se prende à questão da Humanidade terrena e de seu bemestar; que não se trata mais apenas da difusão de algumas ideias filosóficas, mas de fundar alguma coisa de positivo e durável, para a extensão e a consolidação da Doutrina que deve produzir os frutos que ela é suscetível de dar.

Imaginar que ainda estamos nos tempos em que alguns apóstolos podiam pôr-se a caminho com o cajado de viagem, sem preocupação com a hospedagem e o pão cotidiano, seria uma ilusão logo desfeita por uma amarga decepção. Para fazer algo de sério, é preciso que nos submetamos às necessidades impostas pelos costumes da época em que vivemos. Essas necessidades são muito diferentes daquelas dos tempos patriarcais. O próprio interesse do Espiritismo exige, pois, que calculemos os meios de ação para não sermos detidos no meio do caminho. Calculemos, pois, já que estamos num século em que é preciso contar.

As atribuições do comitê central serão bastante numerosas, como podemos ver, por necessitar uma verdadeira administração. Tendo cada membro funções ativas e assíduas, se não nos tornássemos senão homens de boa vontade, os trabalhos poderiam sofrer com isso, porque ninguém teria direito de censurar os negligentes. Para a regularidade dos trabalhos e do expediente, é necessário ter homens com cuja assiduidade se possa contar, e cujas funções não sejam simples atos de complacência. Quanto mais independência eles tiverem por seus recursos pessoais, menos eles ficarão adstritos a ocupações assíduas; se não as tiverem, poderão dar o seu tempo. É preciso, pois, que sejam recompensados, assim como o pessoal administrativo. Com isso a Doutrina ganhará em força, estabilidade, pontualidade, ao mesmo tempo que será um meio de prestar serviço a pessoas que dele poderiam ter necessidade.

Um ponto essencial na economia de toda administração previdente é que sua existência não repousa sobre produtos eventuais que podem faltar, mas sobre recursos fixos, regulares, de maneira que sua marcha, aconteça o que acontecer, não possa ser entravada. É necessário, portanto, que as pessoas chamadas a dar o seu concurso não possam conceber qualquer inquietação pelo futuro. Ora, a experiência demonstra que devemos considerar como aleatórios os recursos que não se baseiam senão no produto de cotizações, sempre facultativas, sejam quais forem os compromissos assumidos, e de uma cobertura muitas vezes difícil. Assentar as despesas permanentes e regulares em recursos eventuais, seria uma falta de previdência que um dia poderíamos lamentar. Sem dúvida as consequências são menos graves quando se trata de fundações temporárias que duram o tempo que podem. Mas aqui é uma questão do futuro. A sorte de uma administração como esta não pode estar subordinada aos riscos de um negócio comercial; ela deve ser, desde o começo, tão florescente, pelo menos tão estável quanto será daqui a um século.

Quanto mais sólida for a sua base, menos exposta estará aos golpes da intriga.

Em semelhante caso, a mais vulgar prudência quer que capitalizemos os recursos de maneira inalienável, à medida que eles cheguem, a fim de constituir um rendimento perpétuo, ao abrigo de todas as eventualidades. Quando a administração regula suas despesas pelo rendimento, sua existência não ficará comprometida em caso algum, porquanto ela sempre terá meios para funcionar. Inicialmente, ela pode ser organizada numa escala menor; os membros do comitê provisoriamente podem limitar-se a cinco ou seis, o pessoal e os gastos administrativos reduzidos ao mínimo possível, com a condição mínima de proporcionarem o desenvolvimento pelo incremento dos recursos para cobertura dos gastos considerados indispensáveis.

Pessoalmente, e embora parte ativa do comitê, não constituiremos sobrecarga ao orçamento, nem por emolumentos, nem por indenização de viagens, nem por uma causa qualquer. Se jamais pedimos algo para nós, ainda menos o faríamos nesta circunstância; nosso tempo, nossa vida, todas as nossas forças físicas e intelectuais pertencem à Doutrina. Declaramos, pois, formalmente, que nenhuma parte dos recursos de que disporá o comitê será desviada em nosso proveito.

Ao contrário, a ele trazemos nossa quota-parte:

1º – Pela cessão do lucro de nossas obras, feitas e por fazer; 2º – Pelo aporte de valores mobiliários e imobiliários.

Assim, fazemos votos para a realização do nosso plano, no interesse da Doutrina, e não para criarmos uma posição para nós, da qual não necessitamos. Foi para preparar os caminhos desta instalação que até hoje consagramos o produto de nossos trabalhos, como dissemos acima. Se nossos meios pessoais não nos permitem fazer mais, pelo menos teremos a satisfação de nela haver posto a primeira pedra.

Suponhamos então que de alguma forma o comitê central, num dado tempo, esteja em condições de funcionar, o que pressupõe um rendimento de 25 a 30 mil francos, restringindo-se, inicialmente, os recursos de toda natureza de que ela disporá em capitais e produtos eventuais que constituirão a Caixa Geral do Espiritismo, a qual será objeto de uma rigorosa contabilidade. Sendo reguladas as despesas obrigatórias, o excedente da renda aumentará o fundo comum. É proporcionalmente aos recursos desse fundo que o comitê proverá as diversas despesas úteis ao desenvolvimento da Doutrina, sem que jamais possa dele tirar proveito pessoal, nem transformá-lo em fonte de especulação para qualquer de seus membros. O emprego dos fundos e a contabilidade serão, além disto, submetidos a vivificação por comissários especiais, para esse efeito delegados pelos congressos ou assembleias gerais.

Um dos primeiros cuidados do comitê será o de ocupar-se com as publicações, desde que haja possibilidade, sem esperar poder fazê-lo com auxílio da renda; os fundos para isto destinados não serão, na realidade, senão um adiantamento, pois retornarão, pela venda das obras, e o produto voltará ao fundo comum. É um assunto administrativo.

Para dar a essa instituição uma existência legal ao abrigo de qualquer contestação, e dar-lhe, além disto, o direito de adquirir, receber e possuir, ela será constituída, se isto for julgado necessário, por ato autêntico, sob a forma de sociedade comercial anônima, por noventa e nove anos prorrogáveis indefinidamente, com todas as estipulações necessárias para que jamais possa afastar-se do seu objetivo, e que os fundos não possam ser desviados de sua destinação.

Sem aqui entrar em detalhes que seriam supérfluos e prematuros, devemos, entretanto, dizer algumas palavras sobre duas instituições acessórias do comitê, a fim de que não se enganem quanto ao sentido que a elas atribuímos. Queremos falar da caixa de socorro e da casa de retiro.

O estabelecimento de uma caixa geral de socorros é uma coisa impraticável, e que apresentaria sérios inconvenientes, como demonstramos num artigo especial (Revista de julho de 1866). O comitê não pode, pois, aventurar-se num caminho que em breve seria forçado a abandonar, nem empreender qualquer coisa que não esteja certo de poder realizar. Ele deve ser positivo e não embalar-se em ilusões quiméricas; é a maneira de avançar por muito tempo e com segurança. Para isto deve, em tudo, ficar nos limites do possível.

Essa caixa de socorro não pode nem deve ser senão uma instituição local, de ação circunscrita, cuja prudente organização poderá servir de modelo a outras do mesmo gênero, que as sociedades particulares poderiam criar. É por sua multiplicidade que elas poderiam prestar serviços eficazes, e não centralizando os meios de ação.

Ela será alimentada: 1º – pela parte da renda da Caixa Geral do Espiritismo a ela destinada; 2º – pelos donativos especiais que a ela forem feitos.

Ela capitalizará as somas recebidas, de maneira a constituir uma renda, e é com essa renda que ela prestará os auxílios temporários ou vitalícios e cumprirá as obrigações de seu mandato, que serão estipuladas em seu regulamento constitutivo.

O projeto de uma casa de retiro, na acepção completa do vocábulo, não pode ser executado de início, em razão dos capitais que semelhante fundação exigiria, e, além disto, porque é preciso deixar à administração o tempo necessário para ela firmar-se e caminhar com regularidade, antes de pensar em complicar suas atribuições por empreendimentos nos quais poderia fracassar.

Abraçar muitas coisas antes de se ter assegurado meios de execução, seria uma imprudência. Compreendereis isto facilmente se refletirdes em todos os detalhes que comportam estabelecimentos desse gênero. Sem dúvida é bom ter boas intenções, mas, antes de tudo, é preciso poder realizá-las.

– Allan Kardec

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