1 — Todas as religiões têm os seus anjos, com diferentes nomes, ou seja, seres superiores à Humanidade, intermediários entre Deus e os homens. O materialismo, negando qualquer existência espiritual além da vida orgânica, naturalmente colocou os anjos entre as ficções e as alegorias. A crença nos anjos faz parte essencial dos dogmas da Igreja. Eis como ela os define (34):
2 — Cremos firmemente, proclamou um concílio geral e ecuménico3 5, que só há um Deus verdadeiro, eterno e infinito, o qual, no começo dos tempos tirou juntamente do nada as duas criaturas: a espiritual e a corporal, a angélica e a mundana, e em seguida formou, como intermediária dessas duas, a natureza humana composta de corpo e Espírito.É esse, segundo a fé, o plano divino na obra da criação. Plano majestoso e completo, como convém à sabedoria eterna. Assim concebido, ele nos apresenta ao pensamento o ser em todos os graus e em todas as condições. Na esfera mais elevada aparecem a existência e a vida puramente espirituais. No último plano, a existência e a vida puramente materiais. E no meio que separa a ambos, uma maravilhosa união das duas substâncias, uma vida comum ao mesmo tempo ao espírito inteligente e ao corpo organizado.
Nossa alma é de uma natureza simples e indivisível, mas é limitada nas suas faculdades. A ideia que temos da perfeição nos faz compreender que podem existir outros seres simples como ela e superiores pelas suas qualidades e os seus privilégios. Ela é grande e nobre, mas está ligada à matéria, servida de órgãos frágeis, limitada na sua atividade e na sua potência. Porque não haveria outras naturezas ainda mais nobres, distanciadas dessa escravidão e desses entraves, dotadas de uma força maior e de uma atividade incomparável?
Antes que Deus tivesse posto o homem na Terra para o conhecer, amar e servir, já não devia ter chamado outras criaturas para comporem a sua corte celeste e adorá-lo no esplendor da sua glória? Deus, enfim, recebe das mãos do homem os tributos de honra e a homenagem deste universo. Seria de estranhar que recebesse das mãos do anjo o incenso e a prece do homem? Se, pois, os anjos não existissem, a grandiosa obra do criador não teria o seu coroamento na perfeição de que era susceptível. Esse mundo que atesta a sua onipotência não seria mais a obra prima da sua sabedoria. Nossa razão, por mais impotente que seja, poderia facilmente concebê-lo mais completo e melhor acabado.
Em cada página dos livros sagrados do Antigo e Novo Testamento são mencionadas essas inteligências sublimes, nas invocações piedosas ou nos relatos históricos. Sua intervenção aparece manifestamente na vida dos patriarcas e dos profetas. Deus se serve do seu ministério, ora para impor os seus desígnios, ora para anunciar acontecimentos futuros. Ele os faz quase sempre instrumentos da sua justiça ou da sua misericórdia. Sua presença é constante nas diversas circunstâncias do nascimento, da vida e da paixão do Salvador. Sua lembrança é inseparável da lembrança dos grandes homens e dos mais importantes acontecimentos da antiguidade religiosa. Podemos mesmo encontrá-los no meio do politeísmo e entre as fábulas da mitologia, porque a crença a seu respeito é tão antiga e tão universal como o próprio mundo. O culto que os pagãos rendiam aos bons e aos maus gênios era apenas uma falsa aplicação da verdade, um resíduo deteriorado do dogma primitivo.
As palavras do santo Concílio de Latrão contém uma distinção fundamental entre os homens e os anjos; elas nos ensinam que os anjos são Espíritos puros, enquanto os homens se constituem de alma e corpo, o que quer dizer que a natureza angélica subsiste por si mesma, não somente sem mistura, mas ainda sem nenhuma associação real possível com a matéria, por ligeira e sutil que se pudesse supô-la. Enquanto isso a nossa alma, igualmente espiritual, está associada ao corpo de maneira a formarem ambos uma única e mesma pessoa e essa é essencialmente a sua destinação.
Enquanto dura essa união tão íntima de alma e corpo, essas duas substâncias têm uma vida comum e exercem, uma sobre a outra, influência recíproca. A alma não pode se afastar inteiramente da condição imperfeita que resulta para ela dessa situação: suas ideias lhe chegam através dos sentidos, por comparação dos objetos exteriores e sempre sob imagens mais ou menos aparentes. Disso resulta que ela não pode se contemplar a si mesma e não pode fazer a si mesma a representação de Deus e dos anjos sem os considerar de qualquer maneira em forma visível e palpável. Eis porque os anjos, para se fazerem visíveis aos santos e aos profetas, tiveram de recorrer a figuras corpóreas. Mas essas figuras eram apenas os corpos aéreos que eles movimentavam sem se identificarem com eles, ou os atributos simbólicos relacionados com a missão de que estavam encarregados.
O ser e os movimentos dos anjos não estão localizados e circunscritos num ponto fixo e limitado do espaço. Não estando ligados a nenhum corpo, eles não podem estar parados nem ser limitados, como acontece conosco, por outros corpos. Eles não ocupam nenhum lugar e não preenchem nenhum vazio. Mas, da mesma maneira em que a nossa alma está inteira no nosso corpo e em cada uma de suas partes, eles se encontram inteiros e quase simultaneamente em todos os pontos e em todas as partes do mundo. Mais rápidos do que o pensamento, podem estar por toda a parte no mesmo instante e agir diretamente, sem nenhum obstáculo aos seus desígnios, a não ser a vontade de Deus e a resistência da liberdade humana.
Enquanto estamos reduzidos a ver aos poucos, de maneira limitada, as coisas que estão fora de nós, e que as verdades da ordem sobrenatural nos aparecem de maneira enigmática, como num espelho, segundo a expressão do apóstolo São Paulo, eles veem sem esforço o que desejam saber e estão em relação direta com o objeto de seu pensamento. Seus conhecimentos não resultam da indução e do raciocínio, mas dessa intuição clara e profunda que abrange os princípios e as consequências que destes decorrem.
A diversidade dos tempos, a diferença dos lugares, a multiplicidade dos objetos não podem produzir nenhuma confusão no seu Espírito.
A essência divina, sendo infinita, é para nós incompreensível. Possui mistérios e profundezas que não podem ser penetradas. Os desígnios mais íntimos da Providência ficam ocultos, mas ela lhes desvenda o seu segredo quando os encarrega, em determinadas circunstâncias, e de os anunciar aos homens.
As comunicações de Deus aos anjos e dos anjos entre si não se fazem, como entre nós, por meio de sons articulados e de outros signos sensíveis. As inteligências puras não precisam de olhos para ver nem de ouvidos para ouvir. Elas não possuem também os órgãos vocais para manifestar os seus pensamentos, pois esses intermediários habituais de que nos servimos são para eles inúteis. Comunicam, porém, os seus sentimentos de maneira que lhes é própria e inteiramente espiritual. Para se fazerem compreender, basta-lhes a vontade.
Somente Deus conhece o número dos anjos. Esse número, sem dúvida, não poderia ser infinito e não o é, mas segundo os autores sagrados e os santos doutores, é muito considerável e verdadeiramente prodigioso. Se é natural que considere-os na devida proporção o número de habitantes de uma cidade em relação à sua grandeza, e a Terra sendo apenas um átomo em comparação com o firmamento e as imensas regiões do espaço, temos de concluir que o número dos habitantes do céu e do ar é muito maior que o dos homens.
Desde que a majestade dos reis se reflete no número de seus súditos, de seus oficiais e de seus servidores, que haveria de mais apropriado para darmos uma ideia da majestade do Rei dos Reis que essa multidão inumerável de anjos que povoam o céu e a Terra, o mar e os abismos, e a dignidade dos que permanecem incessantemente prosternados ou em pé diante do seu trono? Os Pais da Igreja e os teólogos geralmente ensinam que os anjos se distribuem em três grandes hierarquias ou principados, e cada hierarquia em três companhias ou coros.
Os da primeira e mais elevada hierarquia são designados por nomes que decorrem das funções de desempenho no céu. Uns são chamados Serafins porque são como que chamejantes perante Deus pelos ardores da caridade; outros se chamam Querubins porque são um reflexo luminoso da divina sabedoria; e outros ainda se chamam Tronos porque proclamam a grandeza de Deus e a fazem resplandecer.
Os da segunda hierarquia recebem os seus nomes em virtude das operações que lhes são confiadas no governo geral do Universo. São as Dominações que determinam aos anjos das ordens inferiores as suas missões e os seus encargos; as Virtudes que atendem aos prodígios exigidos pelos grandes interesses da Igreja e do género humano; as Potências que protegem pelo seu poder e a sua vigilância as leis que regem o mundo físico e moral.
Os da terceira hierarquia exercem em partilha a direção das sociedades e das pessoas. São os Principados, propostos dos reinos, das províncias e das dioceses; os Arcanjos, que transmitem as mensagens de elevada importância, os Anjos Guardiães que acompanham a cada um de nós velando pela nossa segurança e pela nossa santificação.
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NOTA:
(34) Tiramos este resumo da past oral de Monsenhor Goussett, cardeal-arcebispo de Reims, para a quaresma de 1864. Pode-se pois considerá-la, como aquela referente aos demônios, proveniente da mesma fonte citada no capítulo seguinte, como a última expressão do dogma da Igreja sobre esse assunto. (N. de Kardec.)