3 — O inferno dos pagãos, descrito e dramatizado pelos poetas, é o modelo mais grandioso do género e se perpetuou, projetando-se como o dos cristãos, que teve também os seus poetas. Comparando-os podemos encontrar, salvo os nomes e algumas variações de detalhes, numerosas analogias entre eles. Num e noutro o fogo material é o elemento básico das torturas porque simboliza os mais cruéis sofrimentos. Mas, coisa estranha! os cristãos conseguiram, em diversos sentidos, exagerar o inferno dos pagãos. Se estes últimos tinham no seu o tonel das Donaides, a roda de Íxion, o rochedo de Sísifo, esses eram suplícios individuais. O inferno cristão tem por toda parte caldeiras ferventes, cujas tampas os anjos erguem para verem as contorções dos condenados. Deus ouve sem piedade os gemidos desses últimos pela eternidade. Jamais os pagãos figuraram os habitantes dos Campos Elísios inspecionando os suplícios do Tártaro.
4 — À semelhança dos pagãos, os cristãos têm o seu rei dos infernos que é Satanás, com a diferença de que Plutão se limitava a governar o império sombrio que havia recebido, mas sem praticar maldades. Ele retinha nesse império os que haviam praticado o mal, por que essa era a sua missão, mas não procurava induzir os homens ao mal pelo prazer de os submeter ao sofrimento. Satanás entretanto recruta as suas vítimas por toda parte e se alegra de fazê-las atormentar por legiões de demônios armados de tridentes para revolvê-los nas chamas. Tem-se mesmo discutido seriamente sobre a natureza desse fogo que queima sem cessar os condenados, sem jamais os consumir, chegando-se a perguntar se seria um fogo de betume. O inferno cristão não permite, pois, que o inferno pagão o exceda em nada.
5 — As mesmas razões que fizeram os antigos localizar a morada da felicidade, determinaram também que se localizasse a dos suplícios. Tendo localizado a primeira nas regiões superiores, era natural que colocassem a segunda nos inferiores, no centro da Terra, para o qual, segundo se acredita, certas cavernas sombrias e de aspecto assustador serviam de entrada.
Foi assim também que os cristãos, durante longo tempo localizaram o lugar dos condenados. Notemos ainda a esse respeito, outra analogia.
O inferno dos pagãos tinha de um lado os Campos Elísios e de outro o Tártaro. O Olimpo, morada dos deuses, dos homens divinizados, ficava nas regiões superiores. Segundo a letra do Evangelho, Jesus desceu aos infernos, ou seja, nos lugares baixos para tirar dali as almas dos justos que esperavam a sua vinda. Os infernos não eram, portanto, apenas um lugar de suplício. À semelhança do que acontecia entre os pagãos eles estavam também nas regiões inferiores. Assim como o Olimpo, a morada dos anjos e do s santos estava nas regiões elevadas, colocada para lá do céu das estrelas, que se considerava limitado.
6 — Essa mistura das ideias pagãs com as cristãs nada tem que nos deva surpreender. Jesus não podia destruir de repente as crenças enraizadas. Os homens não dispunham dos conhecimentos necessários para conceber o espaço como infinito e povoado de mundos em número infinito. A Terra era para eles o centro do universo. Não conheciam a sua forma nem a sua estrutura interior. Tudo lhes parecia limitado segundo a sua compreensão: as noções referentes ao futuro não poderiam exceder os limites dos seus conhecimentos.
Jesus se encontrava, pois, na impossibilidade de iniciá-los no verdadeiro conhecimento da realidade. Mas, de outro lado, não querendo sancionar com a sua autoridade os prejuízos dominantes, preferiu abster-se, deixando ao tempo o trabalho de retificar as ideias erróneas. Limitou-se a falar vagamente da vida de bem-aventurança e dos castigos que esperavam os culpados. Mas em parte alguma, nos seus ensinos, encontra-se o quadro dos suplícios corporais que os cristãos transformaram em artigo de fé.
Eis como a ideia do inferno pagão perpetuou-se até os nossos dias. Era necessária a difusão dos conhecimentos nos tempos modernos e o desenvolvimento geral da inteligência humana para lhe dar a justa medida. Mas como nada de positivo pode ser colocado em lugar dessas velhas concepções, ao longo período dominado por uma crença cega sucedeu, como fase de transição, o período da incredulidade ao qual a nova revelação vem pôr um fim. Era necessário demolir para depois reconstruir, porque é mais fácil fazer aceitar as ideias justas pelos que em nada acreditam, em virtude de sentirem que apesar disso alguma coisa lhes falta, do que aos que já possuem uma fé robusta, embora absurda.
7 — Pela localização do céu e do inferno as seitas cristãs foram levadas a admitir que só existiam para as almas duas situações extremas: a perfeita felicidade e o sofrimento absoluto. O purgatório é apenas uma posição intermediária e passageira, da qual elas passam sem transição para a região dos bem-aventurados. Nem poderia ser de outra maneira, dada a crença no destino definitivo da alma após a morte. Havendo apenas duas regiões, a dos eleitos e a dos condenados, não se pode admitir variedade de graus em cada uma delas sem aceitar a possibilidade de as franquear, o que levaria como consequência ao progresso. Ora, se houvesse progresso não haveria sorte definitiva. Havendo sorte definitiva não há progresso. Jesus resolveu a questão quando disse: “Há muitas moradas na casa de meu Pai”.